Os céus trovejam alto e bom som: o navio-mundo está no meio da tempestade moderna. Como enfrentá-la? Que rota buscar?
Malcom Ferdinand, Uma ecologia decolonial
Quase dois anos após o fim oficial da pandemia de Covid-19, o vírus e suas consequências estão em grande medida integrados ao nosso cotidiano. Desde março de 2020 – quando a vida foi posta em perigo e o mundo entrou em estado de suspensão –, até hoje, no entanto, nossos modos de estar no mundo mudaram e surgiram questões que não podem mais ser contornadas. É dessa matéria-prima que se alimentam os vídeos realizados no projeto Nove Solos.
Iniciado como um convite à reflexão sobre os nove países que mantiveram suas fronteiras abertas a brasileiros durante a pandemia – quando o isolamento geopolítico vivido pelo Brasil se somava ao isolamento social vivido por tanta gente –, Nove Solos acompanhou as inevitáveis mudanças de perspectiva que o controle do vírus propiciou. Nesse processo, olhar para trás e ver o que ficou, apesar de às vezes doloroso, permite lançar luz sobre as camadas diversas, às vezes contraditórias, que compõem o tempo presente.
O que os nove vídeos lembram: de uma pandemia racializada, que concentrou renda e aprofundou as disparidades de acesso à saúde e ao cuidado; de guerras, literais ou simbólicas, que atravessaram o tempo e os afetos; da terra e de corpos cansados, em uma busca dividida entre o desejo de evasão e o de reconexão; das tentativas inúteis de controlar os eventos ou prever o que o futuro nos reservava.
Os vídeos apontam essencialmente para sujeitos deslocados em um tempo onde prevalece o absurdo que, se não foi produzido pelo vírus, ganhou uma nova voltagem com ele. Cercados de mar e ar, pequeninos na quase impossível atmosfera, seguimos buscando brechas e caminhos mais ou menos desimpedidos por onde seguir adiante.
A um voo de distância toma como matéria-prima registros de diferentes tipos de voos para refletir sobre a ideia de deslocamento em meio a limites não só geopolíticos, mas também entre espécies. Neste díptico audiovisual, o céu surge como metáfora de um espaço comum, não regulado, cruzado por seres humanos e não humanos em suas distintas rotas. Nele, é possível encontrar refúgio ou destino; é na distância do chão, também, que as perspectivas se embaralham e se fundem, relativizando as posições individuais e as distâncias.
Espaços ao mesmo tempo de conexão e de controle dos fluxos de indivíduos e mercadorias, os grandes aeroportos do mundo são pontos de encontro de línguas e de destinos os mais variados. O esvaziamento desses e de outros lugares de passagem, consequência das restrições de trânsito impostas durante a pandemia, deixou mais evidente sua estranheza: assépticos e sem personalidade, são, no entanto, totalmente integrados à experiência contemporânea do mundo. Tomando partido da particularidade de tais lugares, Babel costura uma reflexão poética sobre a impermanência e o não-lugar habitado pelos estrangeiros por toda parte.
De forma poética, em À deriva Rafael Nascimento coloca o mar – ou os oceanos – como elemento comum aos diferentes territórios, para em seguida nos provocar sobre a quem é de direito navegar. Partindo de uma abordagem aparentemente jornalística, campo investido com voz da verdade e da imparcialidade, a obra ressignifica os textos jornalísticos insistentemente presentes através de uma outra voz, menos fria e mais falível. À deriva parte de invenções memorialistas – práticas originárias e tradicionais de sobrevivência –, e segue rumo à criação de estratégias de fuga de uma pandemia seletiva.
É inegável: por mais acurados que sejam, gráficos e outras representações visuais da realidade são sempre limitados e sujeitos a distorções de perspectiva. A partir dessa constatação, Mão invisível desenvolve uma série de paralelismos entre animações gráficas, onde o movimento de partículas segue regras que supostamente regem também o comportamento da sociedade e do mercado, e trechos de falas de cientistas sociais, economistas e outros pesquisadores. Não existe, no entanto, qualquer equivalência entre animações e as falas, e os paralelismos mais que tudo sublinham as limitações dos modelos que tentam prever o desenrolar dos eventos no mundo real.
A partir do recurso oferecido pelos aplicativos de relacionamento que permite buscar parceiros em qualquer lugar do mundo, CYBERSEXO19 se lança em uma exploração do universo gay nos nove países que mantiveram as fronteiras abertas aos brasileiros durante a pandemia. Em uma espécie de viagem imóvel a partir do telefone celular – que inclui notícias sobre os lugares onde a homossexualidade não é permitida –, o vídeo registra os diálogos, às vezes telegráficos, que tratam da experiência LGBT+ nas diferentes cidades acessadas e, em alguns casos, antecedem uma troca de fotos.
Em uma espécie de fábula contemporânea em chave crítica, Todos abraços que não te dei porque moro longe reflete sobre a territorialização dos afetos e os marcadores sociais que definem os trajetos possíveis a certos corpos. No vídeo, figuras de inspiração mitológica se misturam à paisagem urbana e ao transporte público, em uma jornada algo melancólica em busca da suspensão do estado de guerra – material, mas também simbólica – contra corpos socialmente marcados.
Fala-se hoje à boca miúda, mas de forma cada vez mais constante, o quanto somos mais seres do ar que da terra. A atmosfera é nossa casa. A partir de uma escuta interespécie (ou quiçá intermatéria), feane invoca a contradição irônica entre, por um lado, uma certa antropologia que insistiu (insiste) na ideia de um bom selvagem que vive entre uma natureza inerte e, por outro, a poesia caótica das belas máquinas que destroem. Saberemos, nesta disputa, até que ponto somos natureza?
Em Comunicação Circular, o corpo se apresenta como discurso conceitual e material de um projeto que busca relacionar a circularidade das danças de duas culturas tradicionais – as da região Nordeste e as da Albânia. Neste vídeo, a dupla de diretoras desenvolve uma obra que evoca a crueza de um ensaio e as relações construídas nesses espaços de repetição, convidando outros corpos para costurar os complexos núcleos de movimentos e pensar essas coreografias em sua construção a vários pés, mãos, cabeças e braços.
Mesclando recursos das funções poética e jornalística da linguagem, um negro está perdido. do you hear me? desenvolve uma reflexão em torno de vivências dos corpos negros no mundo, tomando como ponto de partida o Brasil e a República Centro-Africana. As experiências dos dois países e seus distintos estados de guerra interna guiam este vídeo-ensaio entre temas como a desterritorialização, a imigração e as diferentes manifestações de estruturas de poder racializadas que atuam objetiva e subjetivamente contra esses corpos
Sua prática artística costura pesquisa, criação e educação nos campos sonoro e audiovisual, com foco no som como principal disparador de experiências. Desenvolveu os ciclos pedagógicos Oficina de Afroficção e Ficção como arma de guerra. Participou de residências artísticas na Oficina Francisco Brennand (PE), no Pivô Pesquisa (SP), no Lab.Suav (MA), no Arte SESC (PE) e no Solar dos Abacaxis (RJ).
Graduada em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal de Pernambuco. Dirigiu o documentário Esse Cinema Não Possui Saídas de Emergência, sobre duas experiências de ocupação de salas de cinema abandonadas em Olinda. Atua junto ao Ateliê Iza do Amparo em atividades como oficinas, exposições e cineclube.
Atuou como produtor de projetos de intercâmbio cultural junto à GANDAIA Arts (Reino Unido) e foi assistente dos artistas Aslan Cabral e Paula Boechat. Em sua prática combina linguagens como performance, fotografia e pintura. Nos últimos anos vem desenvolvendo parcerias com diversos agentes da arte contemporânea nacional, além de projetos individuais.
Formado em Cinema e Audiovisual na UFPE, realizou os curtas Coração do Mar e Banzo e foi diretor de fotografia de FrevU. Em 2024, produziu seu primeiro projeto em realidade virtual, o vídeo imersivo em 360º )e( . É produtor e curador do Cineclube Alma no Olho, de filmes africanos e da diáspora negra, e idealizador e coordenador da Semana do Audiovisual Negro.
Artista digital e desenvolvedor de jogos, sua prática une vídeo, animação e interação entre artista e público em variados suportes. Atua como VJ e em projetos videocenográficos para artistas da música. Como desenvolvedor, lançou os jogos Pato Rouco, parte do lançamento do single de mesmo nome de Cassio Oli, e Séculos. Participou do Festival SSA Mapping com a obra Música Congelada, projetada na igreja do Nosso Senhor do Bonfim.
Artista transmídia, jornalista e membro do coletivo Coquevídeo, é mestre em Sociologia pela UFPE. Sua produção atravessa campos como a fotografia, o cinema, a literatura, a performance e a cultura popular. Dirigiu o longa-metragem O livro Incompleto das Deusas, as webséries No beat do Brega Funk e O Corpo da Cidade e o videoclipe Faz Ideia, premiado no Festcine 2019. Como artista, realizou as individuais Entre e O nascer é comprido.
Autodidata, iniciou sua produção aos 15 anos com zines de circulação independente. Sua prática artística atual incorpora linguagens como a pintura, a costura e a imagem em movimento, onde se destaca a confecção de máscaras e roupas — como armaduras que protegem o corpo, dando segurança e poder — usadas em ações performáticas nas ruas, documentadas em vídeo.
Graduada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco e pós-graduada em Cultura Visual: Fotografia e Arte Latino-Americana pela UNICAP, é realizadora audiovisual e produtora cultural. Indígena pertencente ao povo Fulni-ô, sua produção artística é voltada para construção de narrativas que atravessam a identidade, ancestralidade e cultura indígena. Participa do grupo de pesquisa Literatura Indígena de Pernambuco.
Dançarina, coreógrafa e arte-educadora, licenciada em Dança pela UFPE. Pesquisa a sensualidade na dança e suas relações com o booty dancing, também conhecido como twerk. Fez parte como dançarina e jurada no I Festival de Twerk Recife. Atualmente faz parte do balé da cantora Uana. Atuou como go-go girl no Marrocos e na Bulgária.
Dançarina, yogini e arte-educadora, licenciada em Dança pela UFPE. Pesquisa e ministra aulas sobre Dança Investigativa, que busca integrar suas duas áreas de atuação – a dança e o yoga – unindo o estudo do movimento e a investigação das emoções. Sua prática acadêmica tem como foco as tradições e a busca por si, com o desenvolvimento de trabalhos em torno de tradições populares brasileiras e hinduístas, envolvendo o yoga.
É poeta, roteirista e realizadora audiovisual. Casa, seu último longa, é um ensaio multigeracional sobre as mulheres de sua família. Doutoranda, sua tese discute uma via de construção da memória histórica e social através de reinvenções autobiográficas no cinema contemporâneo realizado por mulheres negras. Está como artista residente no In-Exile LAB, PLAKA Criatório e Fundação Lapa do Lobo.
Encontro com
Gabriel Bogossian
Encontro com
LIA LETICIA
Encontro com
LOURIVAL CUQUINHA
Encontro com
LIA LETÍCIA E OS/AS ARTISTAS
BEATRIZ RIJO,
DINIAN CALAZANS, FEANE E RAFA NASCIMENTO
Encontro com
GABRIEL
BOGOSSIAN E ANTI RIBEIRO, BISORO E GOOLS
Encontro com
LOURIVAL
CUQUINHA E CHICO LUDEMIR, LETÍCIA SIMÕES, MIA ARAGÃO E PEDRO DOMINGOS
Clarice Hoffmann (Rio de Janeiro, 1967). Jornalista e produtora cultural, atua desde os anos 1990 na cena cultural de Pernambuco idealizando e coordenando projetos como O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos, apoiado pelo edital Rumos – Itaú Cultural, e Macunaíma Colorau, realizado com incentivo do Funcultura. Entre dezenas de trabalhos, vale destacar Nave Tropical, composto por instalações urbanas, performances e exposições, realizadas em Berlim e Recife. Roteirista de novelas gráficas, ficou entre os cinco finalistas do Prêmio Jabuti 2020 na categoria HQ com O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos. Em 2023, lançou pelo selo CEPE HQ seu último trabalho, Pedra D’Água.
Gabriel Bogossian (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1983). Curador independente e ensaísta, Bogossian foi curador da 21ª Bienal Sesc Videobrasil | Comunidades Imaginadas (São Paulo), da Screen City Biennial | Ecologies Lost, Found and Continued (Stavanger) e do Festival VideoEx (Zurique), e de exposições individuais de Ícaro Lira, Minerva Cuevas, Virginia de Medeiros e Akram Zaatari, entre outros. Foi autor das traduções de Americanismo e Fordismo, de Antonio Gramsci, e As vexações da arte, de Svetlana Alpers, além de O contato e o contágio, com Ailton Krenak, e de ensaios sobre a obra de Hrair Sarkissian e a videoinstalação Broken Spectre, de Richard Mosse.
Lia Letícia (Viamão, Rio Grande do Sul, 1975). Artista e curadora. Suas obras exploram o campo ampliado de arte, na tensão entre práticas artísticas e a sua pretensa autonomia, e são exibidas exposições de arte e festivais de cinema. Atua como artista educadora em projetos voltados a experimentações audiovisuais, como Videoarte para Crianças e Escola Engenho, e cursos livres, como Depois da Imagem. Foi curadora do projeto Cinecão, na Galeria Maumau (Recife), e do III Palco Preto. Integrou a equipe curatorial da edição de 2023 de Abre Alas, na galeria A Gentil Carioca (Rio de Janeiro) e assina a curadoria do Cineclube Canto da Sereia, realizado mensalmente na Embaixada da Ciranda.
Lourival Cuquinha (Recife, Pernambuco, 1975). Artista. Suas obras exploram suportes variados, como objetos físicos, ações, vídeos, instalações e intervenções na paisagem urbana, e questionam o estatuto da “obra de arte” para refletir sobre como os artistas atualmente se posicionam frente ao sistema da arte. Ganhou projeção internacional quando realizou ações durante feiras, como Frieze de Londres, ArtRio e Miami Basel, nas quais leiloava obras de sua autoria confeccionadas com cédulas de dinheiro costuradas em forma de bandeira. É mestre em cinema pela University of Wales, Newport, Reino Unido.
Anti Ribeiro, Beatriz Rijo, Bisoro, Chico Ludermir, Dinian Calazans, Feane, Gools, Letícia Simões, Mia Aragão, Pedro Domingos, Rafa Nascimento
Moacyr Campelo
Guilherme Saraiva, Jair Gomes, Yasmin Gomes
Gabriel Bogossian
Daniel Barros
Carlos Oliveira
Bruno Cardoso e Micaias Calvário
Maya Santos
Lili Nascimento
Boa Hora
Association Le Renversé e Tilovita Produções
Ana Carmen Palhares, Ana Glória Melcop, Dayse Marques, Ernesto Barros, Evaristo Nunes, Fernando Duarte, Jarbas Barbosa, Jacira Frois, Julien Ineichen, Liliana Tavares, Léo Banchini, Luiz Joaquim, Mariana Nunes, Mariângela Galvão, Myllena Matos, Nicolas Waechte, Unidade de Artes Visuais da DIMECA da Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj e Ressources Urbaines (Matthias Solenthaler).